Depois da Ruptura da Barragem, Fundo Brumadinho está Repensando a Filantropia

Um fundo liderado pela comunidade tem um modelo único e baseado em confiança para distribuição de doações pode ser um exemplo para o Rio Grande do Sul

October 2024
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Em 2019, a barragem Córrego do Feijão rompeu, jogando milhares de litros de rejeitos de mineração na cidade de Brumadinho.

Nos primeiros minutos após o rompimento, um grupo comunitário chamado Associação Nossa Cidade iniciou um grupo de WhatsApp para ajudar. Em um dia, o grupo tinha mais de 250 pessoas e eles rapidamente criaram uma plataforma de crowdfunding de base; eles arrecadaram R$150.000,00 em poucas semanas.

Em março deste ano conversamos com Cléber Rodrigues, que esteve profundamente envolvido no esforço. Acompanhando o que está acontecendo agora no Rio Grande do Sul, entendemos que a experiência do Fundo Brumadinho pode inspirar ações de médio e longo prazo para os recursos sendo mobilizados no sul do país. 

Proximate

Qual foi a história de origem do Fundo Regenerativo de Brumadinho e como você se envolveu?

Cléber Rodrigues

Em 2019, a barragem do Córrego do Feijão rompeu jogando dejetos de mineração na cidade de Brumadinho. Logo nos primeiros minutos após o rompimento, a Associação Nossa Cidade iniciou um grupo de WhatsApp para ajudar e as notícias começaram a chegar. Em um dia o grupo estava lotado: 256 pessoas e começaram a falar sobre mobilização de recursos.  No dia seguinte a campanha de crowdfunding estava pronta e começaram as chegar as doações. Nas primeiras semanas já haviam 150 mil reais. Nos dias seguintes à queda da barragem os recursos foram enviados direto para pessoas comprarem água, combustivel, o que era preciso. Uma semana depois o Corpo de Bombeiros alertou que o número de voluntários circulando pela cidade estava atrapalhando os esforços de resgate. Neste momento, o recurso já havia sido captado e precisava ser usado, e foi neste momento que a Associação Nossas Cidades parou para planejar o que fazer com os recursos. Formou-se uma aliança entre as organizações de Brumadinho e entorno e foi proposta a criação de um fundo regerenativo para, assim que possível, doar recursos para projetos dentro da comunidade, para ações que pudessem de alguma forma ajudar a regenerar, a cicatrizar as feridas. A aliança, chamada aliança territorial, foi minguando com o passar do tempo, muitas pessoas tiveram perdas pessoais significativas e foram se desvinculando da aliança. A Associação Nossas Cidades continuou ativa e, aos poucos, conseguiu mobilizar pessoas dentro do território para que fossem os curadores para ajudarem a distribuir os fundos captados em aportes de 3.000 reais. 

A Associação Nossas Cidades já tinha experiência com círculos de doação e conhecia a Awsome Foundation que, a partir deste relacionamento, passou a ser a plataforma para submissão dos projetos de maneira simples. Desta maneira, a Associação Nossas Cidades continuou apoiando o fundo voluntariamente com mobilização de recursos e backoffice, além da articulação com a Awsome Foundation, e passando o poder de decisão de escolha e avaliação dos projetos para pessoas da cidade de Brumadinho. Até hoje foram mais de 65 projetos aprovados. 

Eu já estava na Associação quando a barragem rompeu e participei da formação do fundo mas nos bastidores, estava envolvido com outros projetos.  Em  2020 comecei a me envolver mais, me aproximar das pessoas de Brumadinho. Em 2021 veio a chamada da Rede Comuá para o Programa Saberes e me inscrevi para fazer a sistematização de experiência de formação do Fundo, que serviu para que focássemos esforços em organizar a experiência vividas. As pessoas estavam cansadas, aumentaram muito os índices de alcoolismo e depressão na cidade e a prefeitura de Brumadinho, junto com a Vale, foram mudando a narrativa para apagar o que aconteceu e seguir caminho com recursos que começavam a ser repassados pela empressa, via o poder público. O Fundo já estava um pouco sem movimentação quando, a partir do processo de conversas que levou à sistematização para o Programa Saberes, fomos reativando o interesse por ele.

Proximate

Por que o modelo do fundo de doações pequenas e rápidas é melhor? É mais baseado na confiança? Mais flexível e responsivo?

Rodrigues

Surgiu a partir do estudo do que já estava acontecendo em Brumadinho. O Fundo nasce a partir de uma emergencia e a ideia original era de fazer aportes maiores, mas as organizações e coletivos que estavas se inscrevendo não estavam preparados para fazer o processo e talvez nem a Associação Nossa Cidade para fazer os repasses maiores. A ideia é que fossem doações baseadas na confiança. Tinham vários problemas, dificuldades. Por exemplo, as pessoas não tinham internet para fazer o formulário do celular e, também, tinham dificuldades de responder às perguntas simples propostas. Alguns projetos vinham de organizações maiores, estudos relevantes, e outros vinham de senhorinhas pedindo recurso para dar continuidade ao que estava fazendo. Ao mesmo tempo tomando preucações para que pessoas não viessem a se beneficiar destes recursos. Vimos muito, por exemplo, políticos tentando acessar o fundo para projetos que eram campanhas eleitorais.

Proximate

Este é um lugar difícil na prática, certo? Porque me pareceu que querem trabalhar com base na confiança mas ao mesmo tempo prestando atenção o tempo todo, com medo de os recursos serem desviados. É isso? 

Rodrigues

Sim, chegou um momento que limitamos a 3.000,00 também para que, se fosse mal utilizado, tinha um limite. Mas no fim só tivemos dois exemplos, dos 57 da época, que ficamos descontentes. A confiança depositada se provou e se prova verdadeira.

Proximate

O que a filantropia tradicional pode aprender com o modelo do Fundo Brumadinho?

Rodrigues

A confiança. A filantropia tradicional é muito burocrática, é importante desburocratizar para dar acesso. A proximidade de estar no território com as pessoas. A gente vivenciou isso porque tinham pessoas lá dentro, falando com os que acessam os fundos. 

Eu só aprendi que existiam outros fundos com o Brumadinho depois que fiz a sistematização. Eu venho da favela, de movimentos sociais que nunca tinham ouvido falar em doações de recursos como estas… Mesmo sendo cria de movimentos sociais. Depois eu fiquei sabendo que já acontece, mas parece que há um apagamento destas práticas filantrópicas, uma falta de reconhecimento de sendo algo que acontece e é importante para o território. Com a sistematização eu passei a reconhecer esta prática entre as pessoas de filantropia e aprendi que acontece em outros lugares, não só em Brumadinho. 

Proximate

No final do relatório você escreve que "a gestão das atividades principais do fundo se beneficia da expertise dos moradores do próprio território e seu conhecimento sobre suas próprias necessidades". Me conta mais sobre isso?

Rodrigues

Em Brumadinho eles tem uns projetos que, quando a gente olha de fora, pensa.. Puxa, isso… isso não precisa. Mas quando começa a conversar, a gente entende o porque aquele projeto é importante para a pessoa e o lugar. Eu confesso que fui com uma sensação de dinheiro mal empregado, mas tava errado! Por exemplo, teve um cadeirante que apresentou um projeto para consertar cadeira de rodas. Eu pensei, será? Melhor levar em uma borracharia e dá pra consertar 50 cadeiras de rodas com este dinheiro. Ele consertou um monte, não foi 50. Mas esta pessoa virou uma referência no local. Ele se avivou, saiu de um processo depressivo ao ver que o o trabalho dele tinha valor para ouras pessoas. Virou uma referência em Brumadinho! Mas quando eu conversei com pessoas que receberam este concerto fez toda a diferença. A cada visita dessa eu saia envergonhado e eu me dei conta de que não dá pra a gente que tá fora deste território dizer o que é importante e o que não é. 

Proximate

Você fala, na recuperação do processo vivido do fundo Brumadinho, que o modelo do fundo substitui “meritocracia” por “afeto”. O que quer dizer com isso? 

Rodrigues

Vou dar um exemplo. Quando a gente foi nas comunidades tradicionais, no quilombo, ver o projeto de literatura negra nas escolas, que foi um professor que recebeu recursos do fundo para fazer, vimos na prática como o amor dele pela comunidade é parte integrante do que estava sendo proposto com o projeto. Um amor pela comunidade como parte dela. Isso vai muito além do dinheiro recebido. As pessoas que escolhem os projetos, os curadores, são das regiões e eles de alguma maneira conseguem trazer relevância e afeto nas escolhas, mais do que se nós, de Belo Horizonte, fossemos olhar para as propostas de resultados apenas. Este projeto ganhou e um outro, de plantiu de muitas árvores não e depois ficamos sabendo que o plantiu era, na verdade, para o cumprimento de uma promessa de campanha de um político local. Só os curadores sabiam disso.

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