Onze pessoas em uma chamada no zoom compartilhando o que dinheiro significa para cada uma delas. Ausência, culpa, possibilidade, realização de sonhos, gratidão, peso. Foi com essas diferentes perspectivas - frutos de trajetórias tão distintas - que nos encontramos pela primeira vez como grupo no Confiança no Flow.
O Confiança no flow é uma experiência que começou a ser desenhada em outubro de 2023, durante o encontro da comunidade de prática em filantropia transformadora anfitriada pela Philó | Práticas Filantrópicas, Be the Earth Foundation e Meraki Institute. Na prática, um grupo de doadores formou um Círculo de Doadores e, em conjunto, angariou capital para doar. Em seguida, convidaram empreendedores sociais, ativistas e lideranças territoriais para decidirem sobre o destino desse dinheiro, formando o Círculo de Flow Funders.
Cada financiador de fluxo ganha uma parte do capital angariado como forma de reconhecimento do seu tempo e contribuição para o processo, e decide como distribuir o resto dos fundos. A única condição que o Círculo de Doadores estabeleceu é que os flow funders partilhem a sua experiência com o grupo, em reuniões ao longo do ano, sobre como foi o seu processo de tomada de decisão e qual foi o destino do dinheiro.
Nossa experiência foi inspirada pelos círculos de flow funding (financiamento em fluxo) da Be the Earth, que por sua vez se inspirou na prática de Marion Rockefeller Weber, filantropa que cunhou o termo. A ideia por trás de sua criação é a de ultrapassar as amarras burocráticas da filantropia tradicional, e atenuar a verticalidade de poder das suas práticas. É também uma forma mais inteligente de "alocar recursos" porque transfere a tomada de decisão para quem conhece muito mais sobre os problemas sociais e realidades locais. Por último, nos dá a oportunidade de humanizar todas as pessoas envolvidas, abrindo espaço para criação de relações mais horizontais e baseadas na confiança e na transparência.
Vamos partilhar as nossas experiências com este processo - primeiro, a perspetiva da Camila como membro do Círculo de Doadores e depois a perspetiva da Caroline como membro do Círculo de Flow Funding.
O ponto mais sensível do flow funding é justamente o que ele nasceu para desconstruir: o poder inerente no simples fato de deter capital. Poder que a maior parte das vezes não vem do esforço, do trabalho, nem do mérito. Vem de uma transmissão geracional e compulsória de riqueza - e privilégios de classe e raça - que não é vocalmente questionada no mundo da filantropia.
Mas e se traçarmos a genealogia dessa riqueza? Vamos encontrar trabalho e mérito? É mais provável que não. Por trás de toda concentração de capital existe uma história de exploração - dos trabalhadores mas também da natureza e do trabalho majoritariamente feminino de cuidado - e de opressão contínua - de pessoas escravizadas, roubadas e expulsas de seus territórios. E não é nada confortável fazer parte dessa história.
Do meu lado, foi desse desconforto que nasceu a reponsabilidade de escolher sair de ciclo automático de reprodução de desigualdades, e de fazer diferente com o poder que eu tinha recebido. Mas é possível ou desejável abrir mão de poder? Foi com a companhia constante dessa pergunta que me juntei ao grupo iniciador do Confiança no Flow.
Parece simples e bonito: nos juntamos em círculo, economizamos horas de trabalho com editais, análises de projetos, prestação de contas, e conseguimos fazer o dinheiro chegar onde ele é mais necessário. É e não é. Sair da lógica transacional é abraçar a realidade da complexidade das relações, do dissenso, do erro. Mas é nesse espaço que vale a pena navegar, aprender, mudar e começar de novo.
Ao receber a doação que eu direcionei para as mulheres do projeto Yoni das Pretas, fui atravessada por sentimentos profundos e um tanto complexos. Como mulher negra, oriunda de uma comunidade periférica, minha trajetória carrega as cicatrizes de um longo processo histórico marcado pela colonialidade. Ao mesmo tempo, sou herdeira das ciências e tecnologias ancestrais, que transformaram esses corpos feridos em espaços de resistência, cura e criação. Assim, recebi o apoio filantrópico com a consciência de que ele representa mais do que um gesto de ajuda — ele simboliza um encontro entre histórias.
O Yoni das Pretas nasceu da urgência de recriar, em meio ao caos da exclusão e da violência racial e de gênero, um espaço onde mulheres negras possam exercer controle sobre seus corpos, sua saúde e seu futuro. Nossa luta por autonomia ressoa as vozes das nossas ancestrais, violentamente subjugadas, mas não silenciadas. Nosso projeto é uma resposta direta à colonialidade que ainda rege as estruturas de poder, uma tecnologia de autocuidado e cura coletiva. Quando o apoio filantrópico chegou até nós, ele nos deu a oportunidade de continuar tecendo essa rede de acolhimento.
Porém, essa doação também carrega uma camada de história não falada — a herança dos doadores, marcada pelas economias coloniais e suas dinâmicas de exploração e exclusão. Isso nos leva a refletir sobre o papel da filantropia no contexto da reparação histórica. Ela pode ser uma poderosa ferramenta de redistribuição de recursos e, mais importante, de poder. Para isso, o gesto precisa transcender a caridade e se tornar uma aliança, como sugere Antonio Bispo dos Santos. O compromisso deve ser compartilhado, com o objetivo de uma transformação coletiva.
A colonialidade, como explica o sociólogo Aníbal Quijano, vai além do domínio político e econômico das metrópoles sobre as colônias. Ela é uma matriz de poder que organiza as sociedades contemporâneas em torno de hierarquias raciais, de gênero e de classe, mantendo vivas as estruturas de exclusão criadas no período colonial. No Brasil, isso se reflete nas desigualdades de acesso a recursos, educação e oportunidades, e na marginalização de negros, indígenas e outros grupos não brancos.
A reparação histórica, portanto, é um imperativo moral e político. Vista por essa ótica, a filantropia pode mitigar os efeitos da colonialidade, redistribuindo recursos de forma mais justa. No entanto, é essencial que ela reconheça as dívidas históricas que as elites econômicas, e suas linhagens, devem às populações marginalizadas.
Aqui, o conceito de Aliança, de Antonio Bispo dos Santos, ganha relevância. Para haver verdadeira reparação, os doadores precisam estar em aliança com os receptores, e não perpetuar uma lógica de poder onde os recursos fluem de cima para baixo. A aliança implica co-responsabilidade no enfrentamento das injustiças geradas pela colonialidade. Nesse contexto, a filantropia deve ser um projeto coletivo e contínuo de transformação social, pautado pelo reconhecimento do passado colonial e por ações concretas de reparação.
A pesquisa "Periferias e Filantropia", publicada pela Iniciativa Pipa, revela que iniciativas de base comunitária, mesmo operando em condições adversas, demonstram uma enorme capacidade de organização e resistência. Esses grupos movem-se não pela lógica tradicional da filantropia, mas pela confluência de saberes e práticas que unem diferentes atores em torno de um projeto comum de sobrevivência e dignidade. Essa confluência é uma força que resiste e cria soluções autônomas frente à marginalização.
Portanto, se a filantropia deve ser reinterpretada como uma reparação histórica, ela precisa se basear em alianças com as comunidades afetadas, respeitando suas práticas autônomas. As iniciativas de base não são receptores passivos de ajuda, mas protagonistas da transformação social.
O conceito de Confluência, também proposto por Antonio Bispo dos Santos, descreve o encontro de saberes e trajetórias de luta em torno de um objetivo comum. Mais do que colaboração, a confluência une múltiplas vozes para criar algo novo — um movimento que transcende as lógicas coloniais de separação e hierarquia. Diferente da caridade, a confluência emerge das práticas de resistência e solidariedade de comunidades historicamente marginalizadas.
A Aliança é central nesse processo. Ao invés de relações de poder unilaterais, as alianças são baseadas em reciprocidade e no reconhecimento mútuo. Elas se constroem sobre a consciência compartilhada das violências que a colonialidade perpetuou, mas também sobre as soluções coletivas que essas comunidades desenvolveram ao longo dos séculos.
Nas periferias do Brasil, onde os recursos são escassos e o acesso à filantropia tradicional é limitado, as organizações comunitárias constroem suas próprias redes de apoio. Essas redes escapam das dinâmicas formais de financiamento, operando com poucos recursos e sobrecarregando seus membros para manter as atividades. Aqui, a confluência de saberes e esforços se torna uma estratégia essencial para superar as adversidades e garantir a autonomia.
Essas práticas comunitárias remontam a estratégias históricas de resistência, como o quilombismo, baseadas na união entre grupos oprimidos para garantir a sobrevivência e o bem-estar coletivo. Diferente da filantropia, essas redes são vistas como formas de resistência, e não de assistência. Seu objetivo não é apenas aliviar temporariamente a marginalização, mas criar estruturas alternativas de autonomia e dignidade.
Repensar a filantropia como reparação histórica significa apoiar essas redes já existentes, sem tentar substituí-las. A verdadeira transformação social vem da confluência de saberes e da construção coletiva entre os próprios marginalizados.
A experiência com o Círculo de Doadores e Flow Funding trouxe algo essencial: autonomia. Não foi um auxílio de cima para baixo, mas o reconhecimento do nosso protagonismo. Como herdeira de tecnologias ancestrais, não fui colocada no papel passivo de quem recebe e agradece. Fui empoderada a conduzir os recursos recebidos do Círculo de Doadores conforme as necessidades do meu povo, segundo as urgências que enfrentamos como mulheres negras. Esse apoio nos permitiu aprofundar as práticas que transmitimos há séculos: as de cuidado, união e resistência.
Ao refletir sobre essa experiência, me veio a consciência de que, assim como o corpo que carrego testemunha a história dos meus antepassados afro-pindorâmicos, a filantropia ecoa as riquezas acumuladas sobre os corpos de mulheres como eu. Essa doação não é apenas um gesto de boa vontade; é parte de um processo de reparação histórica, em que os herdeiros das economias coloniais devem se posicionar ao lado daqueles que herdaram o peso dessa história.
Nesse encontro entre a herdeira das tecnologias ancestrais e a herdeira das economias coloniais, surge a oportunidade de ressignificação. A filantropia deixa de ser um alívio temporário e se torna um compromisso contínuo com a reparação. A aliança que se constrói aqui deve ser horizontal, baseada na confiança e no respeito mútuo. Não somos receptores passivos de ajuda, mas agentes de nossa própria transformação. O Yoni das Pretas, sustentado pela confluência de saberes ancestrais e pela busca por autonomia, é uma expressão viva dessa luta.
Por fim, as palavras de Conceição Evaristo ecoam: "minha poesia não é para ninar a casa grande." Essa poesia, assim como nosso projeto, é para despertar, sacudir consciências e promover mudança real. Assim como a filantropia deve ser disruptiva e crítica, ela precisa romper com as lógicas coloniais de controle e dependência. Somente quando reconhecemos a profundidade histórica do que está em jogo podemos criar um caminho para uma reparação verdadeira, onde tecnologias ancestrais e economias contemporâneas se encontram para construir um futuro de justiça e dignidade.
The song reflects a past era of development that led to decades of error
Vincent Mwangi