“Garantir que a comunidade permaneça”: desafios e oportunidades para uma filantropia territorial e pelo bem viver

Esta não é sua abordagem usual sobre filantropia. É uma trança de conversas com mulheres indígenas no Brasil que falam de território como vida e de doação como uma prática de relembrar conscientemente. Ela nos convida a desaprender, sintonizar e imaginar a riqueza que flui com cuidado e reciprocidade.

April 2025
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Este texto é uma adaptação de um ensaio produzido para o curso de extensão em Histórias e Culturas Indígenas, promovido anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Universidade da Integração Latino-Americana (Unila).

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“O que é urgente? Garantir que a comunidade permaneça”. 

A fala de Jurema Werneck na Festa Literária das Periferias (FLUP), em novembro de 2024, foi um poderoso chamado à ação para apoiar povos e comunidades tradicionais, como coletivos e organizações indígenas. Nos últimos anos, o movimento indígena brasileiro tem tido cada vez mais força, reconhecimento e visibilidade, ampliando e diversificando sua atuação política. No entanto, não se traduziu em mais recursos, apoios e parcerias para sustentar e manter o trabalho desenvolvido pelas organizações e movimentos nos territórios.

O objetivo deste artigo é refletir sobre essa questão, a partir de conceitos como território e bem viver, e de entrevistas com duas lideranças de organizações que atuam pelo fortalecimento de iniciativas indígenas e pela descentralização de recursos para as populações originárias: Claudia Soares Baré, do Podáali - Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, e Janaina Oliveira, da APIB - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

Iniciarei abordando desafios do cenário atual de financiamento das organizações e coletivos indígenas, caracterizando o escasso e burocrático apoio que chega às comunidades. Em seguida, refletimos sobre como a filantropia pode se decolonizar e se aproximar de uma cosmovisão indígena, propondo o bem viver e o território como conceitos-chave e horizontes de atuação para o campo filantrópico.

A lacuna de financiamento para os povos indígenas

Embora os povos indígenas sejam os maiores defensores das florestas e da biodiversidade brasileira, e estejam crescentemente organizados e articulados em coletivos, associações, articulações e redes, menos de 10% dos recursos voltados para projetos socioambientais e climáticos chegam em suas mãos.

Em 2021, na COP 26, os governos do Reino Unido, EUA, Alemanha, Noruega e Países Baixos, junto a 17 fundações, anunciaram o Indigenous Peoples and Local Communities’ Forest Tenure Pledge, uma promessa de doação de US$ 1,7 bilhão de 2021 a 2025 para que os povos originários e comunidades locais sigam protegendo seus territórios e desempenhando sua função fundamental na luta contra a crise climática. 

No entanto, reportagem da Agência Pública mostrou que apenas 7% dos recursos disponibilizados se encaixam na modalidade “apoio direto” – ou seja, verba direcionada às organizações indígenas sem a existência de intermediários, como organizações sem fins lucrativos ou governos. A maior parte dos recursos foi direcionada para grandes ONGs internacionais. 

Como mostra a reportagem, “depois das ONGs internacionais (51%), os governos foram os que mais receberam recursos doados em 2021 (17%), seguidos por agência ou fundo multilateral (10%), mecanismo internacional de regranting ou fundo regional (8%) e só então as próprias entidades indígenas”.

Essa é uma tendência no campo da filantropia e do financiamento socioambiental e climático: que o recurso seja gerido por grandes ONGs internacionais, que operam projetos com povos indígenas mas não são lideradas por indígenas. “Os povos indígenas ainda quase não acessam diretamente o financiamento climático endereçado às suas próprias comunidades por governos e entidades filantrópicas”, frisa a reportagem.

Isso é particularmente preocupante porque esses doadores internacionais constituem a maior parte do apoio filantrópico às comunidades indígenas. A coordenadora de projetos da APIB, Janaina Oliveira, afirma que “90% dos apoios recebidos são recursos externos”, preocupação também expressada por representantes do ISA e do Fundo Casa Socioambiental. 

“Não temos uma filantropia no Brasil com olhar pros povos indígenas”, afirma Inimá Krenak, do Fundo Casa. “Além disso, muito dessa filantropia é voltada para proteção de florestas. É importante. Mas precisamos olhar para outras pautas, como iniciativas culturais.”

O Fundo Casa lançou um estudo no ano passado que chama atenção para este desafio, no qual afirmam que “os financiadores, em geral, não conhecem a realidade e as demandas locais, não reconhecem as dificuldades, a falta de estrutura e as diferenças culturais desses grupos. Mesmo quando têm ciência disso, seus mecanismos de apoio inviabilizam os apoios diretos. Acabam optando por fortalecer grandes organizações que executam projetos para essas comunidades. No entanto, isso acaba, ainda que sem intenção, perpetuando o choque do pensamento colonialista sobre as populações afetadas”.

Felizmente, isso está começando a mudar. Uma forma mais intencional de filantropia liderada por indígenas está surgindo das próprias comunidades indígenas. 

Em busca de uma filantropia decolonial

O Podáali é o primeiro mecanismo amazônico de captação e redistribuição de recursos para povos, organizações e comunidades indígenas. Ele começa ouvindo as comunidades e tem como diretrizes a maior descentralização e flexibilidade dos recursos. Para Janaína Oliveira, a decolonização da filantropia passa por repensar processos e procedimentos: “Ao mesmo tempo em que os indígenas aprendem a trabalhar dentro do regramento do não indígena (ter a nota fiscal, recolher imposto, etc), quem está doando também tem que entender as particularidades de cada lugar. Quando um coordenador está andando no território, ele precisa ter dinheiro na mão, seja para um alimento, um remédio, demandas que não podem esperar. Daí a importância de maior flexibilidade”. 

Ela também destaca a necessidade de  enfrentar o racismo presente no setor. “Indígenas recebem remunerações menores e têm seu trabalho e aptidões menos reconhecidos, por exemplo”.

Muitos dos financiadores ainda possuem, principalmente no Brasil, critérios que não dialogam com a realidade dos territórios, além de burocracias que limitam o acesso de organizações menores -  que, “apesar” de menores, desempenham papéis fundamentais em suas comunidades”, explica Claudia Baré.

“O recurso tem que chegar nas mãos deles, mas tem que chegar de uma forma cuidadosa e respeitosa, no tempo deles, respeitando seus processos. E com isso, infelizmente, a filantropia não é paciente em geral. Ela é muito dura, muito burocrática, muito rígida”, diz Maria Amália, fundadora do Fundo Casa Socioambiental. Para a equipe do Fundo Casa, a resposta está em se distanciar “do “jeito branco de ser”: escutar as comunidades sobre suas reais necessidades, apoiar seu fortalecimento, confiar em sua capacidade de identificação e resolução dos problemas, acompanhar como aliado, parceiro, lado a lado, respeitando a autonomia para aplicação dos recursos e garantindo as ferramentas para a gestão dos projetos, com flexibilidade e acertos de rumos.”

“Cada povo indígena, com seu idioma, tradições, história, tem uma forma diferente de estar no mundo, de se relacionar com a natureza e o cosmos de que são parte indissociável. Os sonhos são espaços fundamentais de relação com outras dimensões, outros seres, determinantes em muitas decisões. Assim como o conhecimento dos anciãos, as necessidades das crianças, o sofrimento dos animais ou das plantas, o humor das montanhas e dos rios. Todos elementos para se levar em conta na hora de pensar um projeto, de alterar o rumo de uma proposta que a princípio parecia boa, ou de abandonar um empreendimento que traria um resultado ruim para a comunidade”, explicam Maíra Lacerda Krenak e Inimá Lacerda Krenak.

Território como horizonte de atuação e transformação

Falar de filantropia decolonial é também falar de apoio a projetos de vida e de bem viver - não o “bem viver” capturado pelo capitalismo, que virou adjetivo de projetos individuais, mas a filosofia coletiva de vida alinhada com a retomada do ser, com a ressacralização da terra e a transformação das relações rumo ao reencantamento do mundo.

Esse bem viver, para além de ser um projeto utópico e decolonial que serve de Sul para um futuro ancestral, é chão, pão e dia a dia de muitos grupos que vivem Brasil adentro. Comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhas e outras são as que produzem experiências de “cosmonucleação regenerativa”, como explica Iran Xukuru de Ororubá, liderança na Aldeia Boa Vista, no Agreste de Pernambuco. Que praticam modos de existência que nos possibilitam enxergar e experimentar outras lógicas além do mundo humano e visível.

O que une essas iniciativas diversas são princípios como os da relacionalidade, correspondência, reciprocidade e ciclicidade: o entendimento de que a realidade existe como um conjunto de seres e acontecimentos interrelacionados, com uma correspondência a nível cósmico entre micro e macrocosmos, entre o grande e o pequeno, e que a cada ato (seja em interações intrahumanas, entre seres humanos e outros seres da natureza ou com o divino) corresponde um ato recíproco. 

Quem faz alianças com iniciativas agroflorestais, afroecológicas, de economia circular, de proteção holística, regenerativas, feministas, antirracistas, anticapacitistas, antiespecistas, que nutrem uma cosmovivência e um pensamento nosótrico, baseado no “nós”, radicalmente comunitário? Como as organizações filantrópicas podem contribuir mais e melhor para ampliar e multiplicar projetos como esses?

O caminho para melhor apoiar essas iniciativas é conhecê-las em seus lugares: nos territórios. “O lugar –não importa sua dimensão– é a sede dessa resistência da sociedade civil”, segundo Milton Santos. Uma filantropia do bem viver, portanto, deve ser necessariamente uma filantropia do território–que pisa na terra, sente a chuva e olha no olho. É no território que a vida acontece: ele é o lugar de fala e de saber, o espaço da luta e do sonho. “O lugar –como a cultura local– pode ser considerado “o outro” da globalização, de maneira que uma discussão do lugar deveria oferecer uma perspectiva importante para repensar a globalização e a questão das alternativas ao capitalismo e à modernidade”, escreve Arturo Escobar.

Nesse sentido, é preciso praticar uma filantropia que se dedique a ampliar as “uniões horizontais”, também nas palavras de Milton Santos. Que nos ajude a “pensar na construção de novas horizontalidades que permitirão, a partir da base da sociedade territorial, encontrar um caminho que nos libere da maldição da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade”.

Que estas reflexões soem como um convite: que sustentemos e ampliemos horizontalidades para garantir que a comunidade permaneça.

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