O campo da filantropia no Brasil está crescendo. À medida que novos dados surgem, há uma possibilidade real de desenvolvimento com base na experiência de países com uma história mais longa de desenvolvimento da filantropia. Uma dessas possibilidades é o surgimento da representação fiscal.
A necessidade de novas estruturas filantrópicas foi destacada em um estudo recente, Periferias e Filantropia: as Barreiras de acesso aos recursos no Brasil, realizado pela Iniciativa PIPA em parceria com o Instituto Nu.
O relatório compartilha dados inéditos sobre a concentração de recursos na filantropia brasileira e as barreiras que os grupos de base comunitária que trabalham “na periferia” enfrentam para acessá-los.
Alguns dados chamam a atenção. Por exemplo, a maioria dos grupos periféricos - que geralmente atuam em regiões pobres do país - é liderada por mulheres negras, que trabalham o triplo ou o quádruplo da carga horária de organizações maiores e têm pouco acesso a sistemas digitais. Ou o fato de 31% das organizações que atuam na periferia sobreviverem com menos de R$ 5 mil por ano.
O relatório também aponta diversas barreiras que impedem que os recursos cheguem a essas organizações da periferia. Algumas são óbvias, como equipes pequenas e sobrecarregadas que não conseguem escrever propostas de financiamento. No entanto, uma das barreiras mais interessantes é o fato de muitas organizações periféricas não estarem formalmente constituídas como OSCs.
Em vez de formalizar coletivos e organizações periféricas, o que pode ser muito caro e desviar a atenção da missão da organização, uma abordagem que achei interessante é a representação fiscal, em inglês fiscal sponsorship, que tem se tornado cada vez mais popular fora do Brasil.
Um Novo Tipo de Parceria
A representação fiscal refere-se a um modelo operacional no qual uma organização sem fins lucrativos formalmente constituída fornece apoio administrativo, financeiro e fiduciário a outros projetos e coletivos.
Isso é particularmente útil para pequenas organizações para as quais o custo da formalização não faz sentido e para coletivos que, devido à sua natureza de organizações de conexão entre o campo, deliberadamente optam por não se formalizar.
Quando a formalização é discutida, geralmente a vemos como um desafio que as organizações sociais precisam superar para obter recursos. Mas há um viés inconsciente nisso. Para resolver esse problema, usamos a lógica de que quem tem o dinheiro está no centro do poder. Todos os outros têm de se conformar com sua vontade. Essa é uma das lógicas perversas da filantropia que precisa mudar. Em outras palavras, parte do processo é reconhecer a falta de formalização como um estágio ou uma opção, não como uma falha.
A incubação por um representante fiscal permite que as organizações recebam fundos de forma ágil e segura, seguindo as exigências legais e permitindo que as organizações sociais se concentrem em suas atividades principais. Estar sob o guarda-chuva de um representante fiscal também pode trazer maior credibilidade, ajudando a aumentar o acesso ao financiamento para comunidades historicamente marginalizadas que são agentes eficazes de mudança social.
A representação fiscal tem crescido em outros países, especialmente nos Estados Unidos. De acordo com uma recente pesquisa de campo, existem mais de 100 representes fiscais nos EUA que, coletivamente, apoiam mais de 12.000 projetos sociais e administram mais de US$ 3 bilhões em doações.
Esse modelo chegou recentemente ao nosso país. No entanto, isso ainda é muito novo - o modelo do Brasil não é regulamentado e permanece em uma área cinzenta. Ainda não se sabe para onde o setor irá.
Limitações da Representação Fiscal?
Conversei com dois líderes da filantropia brasileira sobre as possibilidades da representação fiscal no Brasil. Ambos se mostraram entusiasmados com as possibilidades, mas também apontaram algumas limitações.
Um líder, que preferiu permanecer anônimo, disse que é natural que a representação fiscal ainda esteja em sua infância no Brasil, assim como a filantropia está em sua infância em comparação com outros países do norte global.
Nos Estados Unidos, o alto imposto sobre herança cria um mercado para serviços filantrópicos, incluindo a representação fiscal. As doações filantrópicas são isentas de impostos, e o representante fiscal pode garantir esse benefício se os fundos forem destinados a um país estrangeiro ou a uma organização não registrada.
Nada disso se aplica no Brasil. Nosso sistema tem um dos impostos sobre herança mais baixos do mundo, com um teto constitucional de 8%, e o sistema tributário oferece incentivos, não isenções, seguindo a política do governo em áreas consideradas prioritárias.
Em outra entrevista, Marcelle Decothé, cofundadora da Iniciativa PIPA, acredita que a representação fiscal é possível na filantropia brasileira. Ainda assim, ela ressalta que o ideal seria chegar a um sistema sem intermediários. “Na PIPA, temos a política de que os intermediários são uma alternativa temporária para a democratização dos recursos. Na situação atual, eles funcionam porque fazem um bom trabalho para atender às demandas e expectativas dos grandes doadores, de modo que os fundos fluam para as organizações. Ainda assim, nossa missão é que não precisemos mais de intermediários e que consigamos ter uma cultura de doação e uma prática de grantmaking no Brasil que consiga chegar a essas organizações de base sem passar pelas grandes organizações”, diz ela.
Essa é uma ressalva importante. Suponhamos que incluamos a representação fiscal no campo filantrópico brasileiro. Nesse caso, devemos estar cientes de que ele deve ser um serviço prestado a organizações e coletivos, atuando como uma ponte entre o doador e a organização social, trazendo a estrutura necessária para o relacionamento.
Ainda assim, o modelo de negócios do representante fiscal não deve ser pressionado pelos sistemas econômico e de poder. Caso contrário, ele também acabará se adaptando às demandas dos doadores para acesso a recursos, repassando elas às organizações sociais e perdendo completamente seu senso de propósito como facilitador do fluxo de recursos, uma crítica que ouvimos de outros países do Sul Global.
A representação fiscal poderia desviar a atenção de conversas mais amplas sobre a necessidade de mudar fundamentalmente a forma como a filantropia opera no Brasil. “Entendemos que se trata de uma solução paliativa para as doações que estão sendo feitas no Brasil, que não são muito significativas e, mesmo quando estão disponíveis, geralmente são muito restritas. ...temos sempre que ter como objetivo uma discussão de longo prazo sobre a mudança da cultura de doação brasileira”, adverte Decothé.