Terra, Poder e Coletividade: novos caminhos dentro da filantropia

Como a terra, a riqueza e a filantropia estão sendo reimaginadas por meio da administração participativa, da regeneração ambiental e da tomada de decisões coletivas.

April 2025
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Durante séculos, a terra foi sagrada - uma fonte de vida, cultura e pertencimento. No entanto, à medida que a propriedade privada e a expansão do capital se consolidaram, ela se tornou uma mercadoria, concentrada nas mãos de poucos. Mas agora, uma revolução silenciosa está em andamento. Herdeiros, ativistas e empreendedores sociais estão desafiando essa lógica e, misturando capital filantrópico e financeiro, se tornando pioneiros em modelos de administração participativa da terra que centralizam a regeneração ambiental e a justiça social.

Neste artigo, você conhecerá dois desses pioneiros: Gislaine Rosa, agricultora de Minas Gerais, e Camila Haddad, diretora executiva da Próspera Social. Suas histórias iluminam um caminho em direção a um tipo diferente de riqueza - medido não em acúmulo, mas em prosperidade compartilhada, paisagens restauradas e tomada de decisões coletivas. Desde transformar uma fazenda de gado em um paraíso agroflorestal até repensar a própria natureza da herança e do investimento, o trabalho deles redefine o que significa possuir, doar e pertencer.

Este é um convite para ir além do status quo da filantropia, em um mundo onde terra, justiça e generosidade se entrelaçam. Um mundo em que a transparência não seja apenas uma exigência imposta às organizações sem fins lucrativos, mas uma prática adotada pelos financiadores. Um mundo em que o poder não é acumulado, mas mantido coletivamente.

De Minas para o Mundo

Antes de falecer, Gislaine realizou o sonho de encontrar um propósito para a fazenda pecuarista de sua família em Campo Belo, no sul de Minas Gerais. Ela procurou João Paulo Pacífico, engenheiro, CEO do Grupo Gaia e ativista, e manifestou seu desejo de doar a propriedade de 1500 hectares à Gaia ressignificando o uso da terra para que passasse a cumprir uma função social ao invés de ser explorada comercialmente.  O legado de Gislaine, de cerca de R$40 milhões, passará a implementar um sistema de produção agroflorestal, que irá regenerar o solo e gerar renda para famílias assentadas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Nesse modelo, a gestão e o uso da propriedade são coletivos. “Eu me posiciono no sentido contrário ao que pessoas como a Gislaine faziam, então faria sentido ela ter uma visão contrária a mim. Mas ela dizia que concordava com tudo o que eu falava, que não fazia sentido plantar soja com pessoas passando fome e quando temos agroecologia. Foi uma grande desconstrução”, relata João, que possui um MBA em Finanças pelo Ibmec.

Segundo ele, o local terá uma associação de moradores e uma cooperativa para a produção e comercialização dos alimentos produzidos. Atualmente, parte do solo tem sido preparada para a transição agroecológica e a expectativa é que as famílias comecem a morar no terreno no segundo trimestre deste ano. No entanto, esse prazo pode mudar, pois é essencial assegurar a excelência do projeto. “É algo vivo, não tenho pressa. É mais do que aquela pressa do capitalismo, do ‘tempo é dinheiro’. Prefiro que seja muito bem feito para que seja um projeto muito sustentável em todos os aspectos, é importante nos preocuparmos mais com a qualidade do que com o tempo”, acrescenta.

Bem viver e redistribuição de patrimônio familiar

Camila Haddad é cofundadora e diretora executiva da Próspera Social, um family office dedicado ao financiamento de projetos de impacto socioambiental. Formada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo (SP), Camila interrompeu a trajetória de acumulação de patrimônio da família e, juntamente com a irmã, desenvolveu a Próspera Social, que é baseada na filosofia do bem viver e tem a missão de apoiar projetos e organizações vinculados à regeneração da terra, ao fomento do acesso à alimentação saudável e à disseminação cultural, artística, científica e tecnológica de grupos historicamente marginalizados, como povos tradicionais, originários e afrodescendentes. 

Entre suas referências teóricas, estão as obras O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos, do economista Alberto Acosta, Pequeno tratado do decrescimento sereno, de Serge Latouche, além de livros do líder indígena Ailton Krenak, assim como o Ciclo Selvagem, que também é orientado por Krenak, e promove diálogos entre diversos saberes, incluindo perspectivas indígenas, acadêmicas e tradicionais. 

“A Próspera nasce para colocar esse patrimônio a serviço do que desejamos construir. Se o problema é acumulação de poder e riqueza, falamos de distribuir e fazer diferente. Um dos aspectos centrais da nossa Teoria de Mudança é a terra. Quando olhamos para a terra, estamos falando de pensar em novos modelos de ocupação, regeneração e recuperação da biodiversidade e de acesso à terra. Sempre pensamos a terra a partir de um caráter coletivo. Se eu falo de um grande projeto de regeneração dentro de uma propriedade familiar privada, quem terá acesso a esses recursos naturais que estão sendo regenerados? Nossa lógica está neste lugar de integração entre homem, natureza e coletividade”, explica.

A Próspera Social apoia diversas cooperativas que produzem alimentos agroecológicos e mantém a floresta de pé. Uma delas é o Fundo Agroecológico (FUA), que visa proteger terras agrícolas da expansão urbana e proporcionar mais segurança na posse da terra aos pequenos agricultores agroecológicos. Ao adquirir propriedades rurais, o FUA garante o uso dessas terras por aqueles que sabem produzir de forma sustentável, destinando-as para a produção agroecológica.

“Pensamos sempre no acesso à terra e no caráter de governança dos projetos. Não dá para falar de terra no Brasil sem citar pessoas indígenas e negras. Estamos falando de um processo de acumulação de terra que ocorreu com a escravização de pessoas africanas e com o genocídio da população indígena. Como essas pessoas acessam a terra? Tentamos ir na raiz do que patrimônio significa”, observa Camila. 

A Próspera Social adota uma abordagem de finanças híbridas para apoiar organizações de impacto social. Isso significa que o family office realiza investimentos financeiros e doações, dependendo do que a situação pede. Os investimentos sociais retornáveis geralmente são feitos com o apoio de atores do ecossistema filantrópico, como a Sitawi Finanças do Bem, organização que desenvolve soluções financeiras para impacto social. As doações são feitas com base na confiança.

“Quanto mais próximo o projeto for de uma mudança sistêmica, mais estaremos dispostos a correr riscos e a pedir menos retorno. Inicialmente, fazemos uma análise de impacto, depois uma análise de retorno e risco e levamos essas informações para o nosso comitê de investimento”, destaca Camila. 

O processo é semelhante quando se trata da filantropia, mas não há análise de risco e retorno. Segundo Camila, é essencial que as iniciativas de impacto socioambiental estejam alinhadas com a Teoria de Mudança da Próspera Social e que criem caminhos para mudanças sistêmicas ou estejam mais conectadas a essas mudanças. Por isso, são priorizados recortes de gênero, raça e de conexão com os territórios onde está o patrimônio.  A Próspera Social também fomenta a conexão com os territórios em que deseja atuar, realizando uma articulação local e contínua, além de estabelecer uma relação de longo prazo com as organizações apoiadas. 

Desconstrução de dinâmicas de poder

As práticas filantrópicas tradicionais falham ao seguir uma lógica vertical, na qual os doadores mantêm o controle sobre a alocação e o uso dos recursos, o que resulta em desequilíbrios de poder. Ao promoverem tomadas de decisão e de governanças coletivas, João Paulo Pacífico e Camila Haddad contribuem para uma filantropia inclusiva e horizontal, na qual os saberes das comunidades diretamente impactadas orientam os caminhos de cada iniciativa e essas pessoas dividem o poder de decisão.

É importante diferenciar o que está sendo proposto por Camila e João de ações assistencialistas do passado. A terra será gerida coletivamente e as famílias assentadas terão autonomia e farão parte dos coletivos decisórios. “Compreendemos que somos aliados e confluentes dos territórios e organizações que estão fazendo mudanças. Eu contribuo com recursos financeiros, mas existe um aprendizado mútuo que ocorre nessas relações, é preciso estar disposto a abrir mão de poder e distribuir recursos”, destaca Camila.

Para João, um dos maiores ensinamentos trazidos pela parceria com o MST foi a importância da coletividade e a ressignificação do tempo: “Tem algo muito interessante no movimento. Estamos acostumados a tomar decisões muito rápidas e escolhas mais estruturadas dentro do movimento demoram mais porque não são individuais, mas coletivas. Para mim, esse olhar coletivo é a principal lição porque está perdido na nossa sociedade, que é muito individualista e imediatista”.

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