Durante séculos, a terra foi sagrada - uma fonte de vida, cultura e pertencimento. No entanto, à medida que a propriedade privada e a expansão do capital se consolidaram, ela se tornou uma mercadoria, concentrada nas mãos de poucos. Mas agora, uma revolução silenciosa está em andamento. Herdeiros, ativistas e empreendedores sociais estão desafiando essa lógica e, misturando capital filantrópico e financeiro, se tornando pioneiros em modelos de administração participativa da terra que centralizam a regeneração ambiental e a justiça social.
Neste artigo, você conhecerá dois desses pioneiros: Gislaine Rosa, agricultora de Minas Gerais, e Camila Haddad, diretora executiva da Próspera Social. Suas histórias iluminam um caminho em direção a um tipo diferente de riqueza - medido não em acúmulo, mas em prosperidade compartilhada, paisagens restauradas e tomada de decisões coletivas. Desde transformar uma fazenda de gado em um paraíso agroflorestal até repensar a própria natureza da herança e do investimento, o trabalho deles redefine o que significa possuir, doar e pertencer.
Este é um convite para ir além do status quo da filantropia, em um mundo onde terra, justiça e generosidade se entrelaçam. Um mundo em que a transparência não seja apenas uma exigência imposta às organizações sem fins lucrativos, mas uma prática adotada pelos financiadores. Um mundo em que o poder não é acumulado, mas mantido coletivamente.
Antes de falecer, Gislaine realizou o sonho de encontrar um propósito para a fazenda pecuarista de sua família em Campo Belo, no sul de Minas Gerais. Ela procurou João Paulo Pacífico, engenheiro, CEO do Grupo Gaia e ativista, e manifestou seu desejo de doar a propriedade de 1500 hectares à Gaia ressignificando o uso da terra para que passasse a cumprir uma função social ao invés de ser explorada comercialmente. O legado de Gislaine, de cerca de R$40 milhões, passará a implementar um sistema de produção agroflorestal, que irá regenerar o solo e gerar renda para famílias assentadas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Nesse modelo, a gestão e o uso da propriedade são coletivos. “Eu me posiciono no sentido contrário ao que pessoas como a Gislaine faziam, então faria sentido ela ter uma visão contrária a mim. Mas ela dizia que concordava com tudo o que eu falava, que não fazia sentido plantar soja com pessoas passando fome e quando temos agroecologia. Foi uma grande desconstrução”, relata João, que possui um MBA em Finanças pelo Ibmec.
Segundo ele, o local terá uma associação de moradores e uma cooperativa para a produção e comercialização dos alimentos produzidos. Atualmente, parte do solo tem sido preparada para a transição agroecológica e a expectativa é que as famílias comecem a morar no terreno no segundo trimestre deste ano. No entanto, esse prazo pode mudar, pois é essencial assegurar a excelência do projeto. “É algo vivo, não tenho pressa. É mais do que aquela pressa do capitalismo, do ‘tempo é dinheiro’. Prefiro que seja muito bem feito para que seja um projeto muito sustentável em todos os aspectos, é importante nos preocuparmos mais com a qualidade do que com o tempo”, acrescenta.
Camila Haddad é cofundadora e diretora executiva da Próspera Social, um family office dedicado ao financiamento de projetos de impacto socioambiental. Formada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo (SP), Camila interrompeu a trajetória de acumulação de patrimônio da família e, juntamente com a irmã, desenvolveu a Próspera Social, que é baseada na filosofia do bem viver e tem a missão de apoiar projetos e organizações vinculados à regeneração da terra, ao fomento do acesso à alimentação saudável e à disseminação cultural, artística, científica e tecnológica de grupos historicamente marginalizados, como povos tradicionais, originários e afrodescendentes.
Entre suas referências teóricas, estão as obras O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos, do economista Alberto Acosta, Pequeno tratado do decrescimento sereno, de Serge Latouche, além de livros do líder indígena Ailton Krenak, assim como o Ciclo Selvagem, que também é orientado por Krenak, e promove diálogos entre diversos saberes, incluindo perspectivas indígenas, acadêmicas e tradicionais.
“A Próspera nasce para colocar esse patrimônio a serviço do que desejamos construir. Se o problema é acumulação de poder e riqueza, falamos de distribuir e fazer diferente. Um dos aspectos centrais da nossa Teoria de Mudança é a terra. Quando olhamos para a terra, estamos falando de pensar em novos modelos de ocupação, regeneração e recuperação da biodiversidade e de acesso à terra. Sempre pensamos a terra a partir de um caráter coletivo. Se eu falo de um grande projeto de regeneração dentro de uma propriedade familiar privada, quem terá acesso a esses recursos naturais que estão sendo regenerados? Nossa lógica está neste lugar de integração entre homem, natureza e coletividade”, explica.
A Próspera Social apoia diversas cooperativas que produzem alimentos agroecológicos e mantém a floresta de pé. Uma delas é o Fundo Agroecológico (FUA), que visa proteger terras agrícolas da expansão urbana e proporcionar mais segurança na posse da terra aos pequenos agricultores agroecológicos. Ao adquirir propriedades rurais, o FUA garante o uso dessas terras por aqueles que sabem produzir de forma sustentável, destinando-as para a produção agroecológica.
“Pensamos sempre no acesso à terra e no caráter de governança dos projetos. Não dá para falar de terra no Brasil sem citar pessoas indígenas e negras. Estamos falando de um processo de acumulação de terra que ocorreu com a escravização de pessoas africanas e com o genocídio da população indígena. Como essas pessoas acessam a terra? Tentamos ir na raiz do que patrimônio significa”, observa Camila.
A Próspera Social adota uma abordagem de finanças híbridas para apoiar organizações de impacto social. Isso significa que o family office realiza investimentos financeiros e doações, dependendo do que a situação pede. Os investimentos sociais retornáveis geralmente são feitos com o apoio de atores do ecossistema filantrópico, como a Sitawi Finanças do Bem, organização que desenvolve soluções financeiras para impacto social. As doações são feitas com base na confiança.
“Quanto mais próximo o projeto for de uma mudança sistêmica, mais estaremos dispostos a correr riscos e a pedir menos retorno. Inicialmente, fazemos uma análise de impacto, depois uma análise de retorno e risco e levamos essas informações para o nosso comitê de investimento”, destaca Camila.
O processo é semelhante quando se trata da filantropia, mas não há análise de risco e retorno. Segundo Camila, é essencial que as iniciativas de impacto socioambiental estejam alinhadas com a Teoria de Mudança da Próspera Social e que criem caminhos para mudanças sistêmicas ou estejam mais conectadas a essas mudanças. Por isso, são priorizados recortes de gênero, raça e de conexão com os territórios onde está o patrimônio. A Próspera Social também fomenta a conexão com os territórios em que deseja atuar, realizando uma articulação local e contínua, além de estabelecer uma relação de longo prazo com as organizações apoiadas.
As práticas filantrópicas tradicionais falham ao seguir uma lógica vertical, na qual os doadores mantêm o controle sobre a alocação e o uso dos recursos, o que resulta em desequilíbrios de poder. Ao promoverem tomadas de decisão e de governanças coletivas, João Paulo Pacífico e Camila Haddad contribuem para uma filantropia inclusiva e horizontal, na qual os saberes das comunidades diretamente impactadas orientam os caminhos de cada iniciativa e essas pessoas dividem o poder de decisão.
É importante diferenciar o que está sendo proposto por Camila e João de ações assistencialistas do passado. A terra será gerida coletivamente e as famílias assentadas terão autonomia e farão parte dos coletivos decisórios. “Compreendemos que somos aliados e confluentes dos territórios e organizações que estão fazendo mudanças. Eu contribuo com recursos financeiros, mas existe um aprendizado mútuo que ocorre nessas relações, é preciso estar disposto a abrir mão de poder e distribuir recursos”, destaca Camila.
Para João, um dos maiores ensinamentos trazidos pela parceria com o MST foi a importância da coletividade e a ressignificação do tempo: “Tem algo muito interessante no movimento. Estamos acostumados a tomar decisões muito rápidas e escolhas mais estruturadas dentro do movimento demoram mais porque não são individuais, mas coletivas. Para mim, esse olhar coletivo é a principal lição porque está perdido na nossa sociedade, que é muito individualista e imediatista”.
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