Versão em Português e nota: Joana Ribeiro Mortari
O Kindle Project é um doador “fora da caixa” sediado nos Estados Unidos e que há mais de uma década vem desenvolvendo métodos criativos e experimentais de grantmaking.
Nos últimos anos, eles iniciaram um processo chamado flow funding, modelo filantrópico descentralizado, criado por Marion Weber, para contornar os métodos tradicionais e burocráticos de grandes doadores.
Em 2020, a Kindle formou um novo círculo de flow funding, chamado Indigenous Women's Flow Fund. Seu primeiro grupo foi um círculo multigeracional de mulheres representando cinco tribos diferentes: Ho-Chunk, Diné/Tsétsêhéstâhese, Isaŋti Dakota, Raramuri e Northern Arapaho. As mulheres, que preferem permanecer anônimas, reuniram-se para decidir como distribuir os fundos para grupos de base que desempenham papéis vitais na linha de frente das comunidades indígenas.
O grupo de flow funding doou um total de US$ 1,84 milhão a 78 beneficiários indígenas nos Estados Unidos. A Kindle divulgou recentemente um relatório detalhando os resultados do projeto após quatro anos. A Proximate conversou com Arianne Shaffer para saber mais sobre a história e a cultura do fundo e o que eles aprenderam com seu trabalho.
O Kindle Project tem muitos programas. Um deles, o Indigenous Women's Flow Fund, recentemente completou seu quarto ano de funcionamento. Você pode nos falar sobre ele?
Antes mesmo de o programa começar, passamos um ano e meio em consulta profunda com as comunidades indígenas. Queríamos moldar o programa com muita intenção, cuidado e consulta. Não temos um indígena na equipe do Kindle Project, mas consultamos muitas pessoas de várias comunidades indígenas que trabalharam conosco para moldelar o programa.
Pensamos nesse trabalho como um ecossistema. Há um grupo de cinco mulheres indígenas e a Sharon Lungo, que é nossa facilitadora para o grupo, faz um excelente trabalho. Há também a equipe do Kindle Project, as pessoas que recebem os recursos doados e, por fim, o grupo de doadores, composto por aqueles que desejam participar de um intercâmbio de aprendizagem entre pares.
Todos os programas do Projeto Kindle utilizam flow funding?
No ano passado, realizamos doze programas; a maioria deles tem como essência a tomada de decisão participativa, em diferentes níveis.
Temos muitos que são flow funding. Acabamos de encerrar um programa de seis anos de flow funding no Novo México (Estados Unidos) cujo foco era a justiça de gênero, chamado Slow Fuse. Também iniciamos recentemente um novo programa chamado New Standard Fund, um fundo local voltado para a Virgínia (Estados Unidos). Trata-se de financiadores (flow funders) negros, indígenas e pessoas não-brancas que tomam decisões sobre o destino do dinheiro em suas comunidades no estado.
Também usamos diferentes tipos de processos participativos de tomada de decisão. No ano passado, fizemos uma chamada aberta para um programa chamado Crossing Divides, que se concentrou em Nebraska, Mississippi e Arizona, todos estados americanos, com foco em meios através dos quais as pessoas estão atravessando divisões políticas e culturais; o painel de seleção foi formado por membros da comunidade e também por nossa equipe.
Embora façamos muitos flow fundings, não é a única coisa que fazemos, e também não achamos que seja a única maneira de se fazer pois não acreditamos em algo padronizado. O dinheiro deve se movimentar. Nós definitivamente acreditamos nisso: em fazer com que os recursos cheguem nas comunidades. O flow funding é apenas um método em que temos profunda experiência e que consideramos eficaz e bonito.
Uma pergunta com duas vertentes: quais são os benefícios que vocês vêem no flow funding? E quais são os desafios?
Quando se usa o flow funding é possível alcançar áreas, grupos, pessoas, projetos e soluções que nunca teríamos conhecido. Como diretora de programa, financiadora ou doadora, só conseguimos alcançar um certo lugar, certo?
Um bom exemplo é o Slow Fuse, nosso flow funding localizado no Novo México. O Kindle Project existe no Novo México há anos; temos raízes e experiência profundas lá. Mas esses flow funders encontraram projetos dos quais nem mesmo nós tínhamos ouvido falar. Portanto, estamos sempre interessados em perguntar: quem não é visto pela filantropia convencional? Onde ela não pode chegar?
Outro benefício é que isso empodera os membros da comunidade a decidirem por si mesmos sobre o destino dos recursos. Eu sempre penso: “Não é tão complicado assim. Por que outra pessoa está decidindo o que a comunidade precisa para si mesma?"
Especialmente alguém que não está envolvido na comunidade.
Principalmente alguém que não está envolvido. Como vou lhe dizer, Kevin, o que Detroit precisa? Porque eu trabalho em uma fundação? Isso é bobagem. Portanto, um grande benefício do flow funding é a autodeterminação, a autonomia e a tomada de decisões para confiar em sua própria sabedoria como membro da comunidade para saber para onde os recursos devem ser direcionados, ou fluir. Vemos muito isso no Indigenous Women's Flow Fund.
Também acreditamos que o processo é um fim em si mesmo. Como tive o benefício de facilitar muitos desses grupos, vi que o flow funding pode curar algo em um grupo. Há muitos traumas históricos em relação à forma como o dinheiro chega às comunidades. Portanto, poder testemunhar e ser testemunhado por sua liderança na comunidade - mesmo que você não seja um líder de renome, você é uma pessoa que está fazendo um trabalho incrível e está tendo a oportunidade de tomar essa decisão - recebemos o feedback de que isso pode ser bastante empoderador.
Com relação a alguns dos desafios: honestamente, a mobilização de recursos pode ser um desafio. Há muitas críticas sobre a quantidade de tempo que as práticas de doação participativas levam, o que eu entendo, e isso pode ser um desafio para a captação de recursos. Estamos entusiasmados e esperançosos de que mais doadores e fundações se entusiasmem com esse modelo e sejam incentivados a movimentar muito dinheiro dessa forma.
Também acredito que pode haver um desafio para os membros de uma comunidade. Há um motivo pelo qual eles são anônimos, e nós a protegemos. Ter acesso a recursos pode criar uma dinâmica diferente dentro das comunidades.
E também pode ser um desafio para aqueles que podem ter essa autodeterminação presente ao tomar essas decisões, mas também estão na comunidade, enfrentando desafios em sua comunidade. Isso pode ser um peso.
Novamente, é aí que a sabedoria do grupo pode entrar em cena. É por isso que trabalhamos em grupos. Não queremos que os financiadores de fluxo passem por muitas das dificuldades que os doadores passam - que geralmente são o isolamento, a culpa e a confusão, porque é preciso muito poder e pressão para tomar decisões sobre dinheiro. Facilitamos um modelo em grupos de pares para que haja um elemento de apoio entre eles.
Práticas filantrópicas que financiam organizações de base podem ainda exigir que as organizações apresentem propostas. Gostaria de saber se o seu fundo exige isso, ou se você está empoderando-os para contornar essa exigência ao dizer: “Aqui está: para quem vai”?
No Indigenous Women's Flow Fund há autonomia para tomar decisões sobre o destino do dinheiro, sem a necessidade de editais. No Projeto Kindle nós pedimos relatórios para qualquer subsídio acima de US$ 5.000, e são muito simples, é uma maneira de nos mantermos em comunicação. Essa é a administração, é isso. Mas não há edital ou necessidade de proposta.
Porém, em qualquer grupo de flow funding que tivemos, nunca tivemos editais, nunca tivemos um grupo dizendo que quer que as pessoas se inscrevam em algo. Este modelo funciona porque há proximidade com a comunidade, e com ela, confiança. Eles podem perguntar a outra pessoa: “Ei, você já ouviu falar de fulano ou ciclano? O que eles estão fazendo? Eles não têm conta em mídia social, mas me falaram deles e parece que estão fazendo um ótimo trabalho”. É geralmente assim que eles fazem suas pesquisas ou a devida diligência.
Percebi que a espiritualidade, a tradição, o alinhamento com a natureza e a cultura são importantes para sua abordagem. Qual papel, se houver, você acredita que nossos rituais culturais devem desempenhar no trabalho que fazemos?
Bom, eu acho que isso deve ser decidido por cada pessoa individualmente; o quanto você quer se trazer. No Kindle Project e nos espaços que facilitamos, você é bem-vindo se trazer por inteiro nas experiências propostas. Às vezes pode se tornar bagunçado; às vezes aparece o luto, em outras alegria. Todas estas coisas podem vir à tona.
No caso do Indigenous Women's Flow Fund, ao receberam esse convite este aspecto chegou naturalmente: elas criariam a cultura de seu grupo com base em suas próprias vidas indígenas.
Percebi que cada grupo tem sua própria cultura, mesmo que seja um grupo multicultural. Com o New Standard Fund, temos um conselheiro chamado Brandon King, que é um artista do Estado da Virgínia. Hoje ele abriu a conversa convidando todos nós a dar as boas-vindas aos nossos antepassados. Alguns podem chamar isso de espiritual, outros podem chamar de cultural.
O que estamos tentando ajudar as pessoas a fazer é acessar a si próprios de maneira mais profunda. No primeiro ano de nossos programas de flow funding, os membros do grupo geralmente tomam decisões de forma independente, embora ainda trabalhem em um contexto de grupo. No segundo ano, gostamos de levar as pessoas a tomar decisões coletivas, o que significa que elas estão usando o consenso. Para entrar em um processo de consenso, é preciso ter conhecimento sobre si mesmo.
Acho que a maior pergunta sobre “o quando do coração e da individualidade de alguém deve ser levado para o trabalho” é muito debatida. Há um monte de gente que diz: "trabalho é trabalho e eu não preciso te contar sobre minha vida pessoal”, e outras que acham que “se você não levar seu coração para o trabalho, não conseguirei me conectar com você e, então, como poderemos caminhar juntos?”
Isso influencia nossa psicologia e nossa tomada de decisões como doadores, intermediários e doadores via flow funding. Incentivamos os grupos com os quais trabalhamos se trazerem por inteiro, o que nem sempre é confortável mas, no final das contas, concluimos que é o que sustenta o apoio mútuo.
Eu gostaria de saber mais sobre Arianne Shaffer. Como uma pessoa para quem a contação de histórias é uma arte importante. Como isso se relaciona com seu trabalho? Que papel você acha que a contação de histórias, como forma de arte, desempenha na filantropia e na mudança de sistemas como um elemento mais amplo?
Minha formação foi em diálogo inter-religioso, capelania e produção de documentários, mas também no setor de fins não-econômicos. Há cerca de 20 anos, eu estava fazendo pós-graduação na Universidade das Nações Unidas para a Paz, na Costa Rica, quando conheci Sadaf, que é cofundadora e diretora executiva do Kindle Project, e nos tornamos amigas queridas rapidamente. Isso foi há cerca de 15 anos, eu entrei no projeto há cerca de 14 anos e tenho trabalhado com eles, de uma forma ou de outra, nos últimos doze anos.
O tipo de narrativa que faço é sobre contar a verdade. Por alguma razão, devido a quem eu sou, às vezes consigo dizer a verdade mais facilmente com um microfone na frente de 100 pessoas do que individualmente. Não sei por quê. Mas o que aprendi é que, quando você diz a verdade sobre algo de sua vida, mesmo que ache que é algo sem importância ou que não seja interessante, isso dá permissão para que outras pessoas também digam a verdade. A vulnerabilidade gera mais vulnerabilidade.
Estou interessado em contar a verdade para poder de fato mudar o sistema, e isso acontece de várias formas. Acho que a maneira como isso se relaciona com a filantropia é: como seria se contássemos e ouvíssemos mais histórias verdadeiras?
Quando pensamos em nossos modelos tradicionais de relatórios e de falarmos sobre nós em editais, nos retratamos como se estivessemos em um palco o tempo todo. Você tem que se vestir e ser bonito da maneira que a pessoa que tem o dinheiro quer que você seja bonito. Se eu usar esse tipo de metáfora defeituosa, já que os padrões de beleza são uma besteira, o que está acontecendo? Por que você não gostaria de saber o que realmente está acontecendo em uma comunidade ou organização; o que é desafiador; o que é prazeiroso?
O que a verdadeira narração de histórias e a capacidade de ouvir ativamente podem fazer é levar pessoas a um encontro verdadeiro. O que também vale para financiadores e doadores. Será que estamos dizendo a verdade sobre o que é desafiador e belo em nosso trabalho, mesmo em um sistema falho? Não tenho certeza.
Para mim a contação de histórias serve para inspirar, incetivar que as pessoas se sintam desconfortáveis por tempo suficiente para atravessá-lo e descobrir o que está do outro lado, onde a conexão pode acontecer.
Nota Editorial para a Proximate Brasil:
No Brasil alguns grupos estão começando a experienciar com o flow funding, mas de maneira geral o assunto nem é parte da conversa sobre filantropia. A ausência das características da filantropia estratégica levam a uma imediata e falsa conexão do flow funding e de outras práticas filantrópicas regenerativas com uma filantropia assistencialista, ou seja, práticas filantrópicas que tem a intenção - consciente ou não - de sustentar as dinamicas de poder da sociedade. No entanto, práticas como o flow funding têm exatamente a intenção contrária, permitindo o desenvolvimento de grupos e comunidades periféricas que, de outra maneira, não teriam aceso à recursos filantrópicos. Confira o artigo de Carolina Amanda e Camila Haddad sobre uma experiência Brasileira.
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Nota da Tradução: a tradução literal de Flow Funding é financiamento em fluxo e o termo é usado para nomear a prática de doação onde os recursos fluem de maneira contínua e fácil das mãos do doador para a o destinatário final.
The song reflects a past era of development that led to decades of error
Vincent Mwangi