A filantropia e o terceiro setor desempenham um papel fundamental na mitigação das desigualdades sociais no Brasil, movimentando bilhões de reais e empregando milhões de pessoas.
De acordo com um estudo recente, “o setor sem fins lucrativos representa 3,93% da produção nacional (equivalente a R$402,4 bilhões), 4,27% do PIB (equivalente a R$220,1 bilhões). Contudo, esse setor, que se propõe a combater injustiças, reproduz, em sua estrutura, dinâmicas de exclusão que afetam principalmente as mulheres negras. Embora estejam na linha de frente da assistência comunitária, seu trabalho é frequentemente invisibilizado e não remunerado, o que perpetua a precarização de suas condições de vida e a continuidade das desigualdades sistêmicas.
Assim, as redes de solidariedade construídas por mulheres negras ao longo da história constituem a espinha dorsal de inúmeras comunidades vulnerabilizadas. Essas redes garantem educação, saúde, alimentação, moradia, lazer, cultura, assistência básica e uma série de direitos para si e para os seus.
Ainda que o voluntariado seja um valor na sociedade, quando essa atuação é amplamente naturalizada e vista como um dever moral, não como um trabalho legítimo que merece reconhecimento e remuneração, temos um desafio. De acordo com uma nova pesquisa do Fundo Agbara, 9 em cada 10 mulheres negras atuam como voluntárias em organizações de base e territoriais, captando em média até R$ 5.000 por ano, sendo que 29% delas chegam a captar até R$ 500. Essa mobilização geralmente se dá por meio de autogestão, utilizando recursos do próprio bolso, vendas de rifas, bazares, bingos e outras inovações sociais que refletem uma lógica de solidariedade e cultura de doação.
Um ponto crucial a ser destacado é que, ao normalizar a ideia de que o trabalho voluntário ao ser confundido com um trabalho de mero cuidado deveria ser uma parte intrínseca da vida das mulheres negras, a sociedade, muitas vezes, contribui para uma desigualdade mais profunda. Este fenômeno se torna invisível para muitos, que veem o voluntariado simplesmente como uma atividade positiva, sem reconhecer as diferentes realidades que moldam essa participação. Enquanto o trabalho voluntário é, sem dúvida, uma expressão de solidariedade e um pilar fundamental em todas as comunidades — independentemente da classe social ou da etnia — o peso e o preço dessa atividade variam enormemente.
Mulheres brancas de classe média ou alta podem dedicar seu tempo ao voluntariado como uma escolha altruísta, sem que suas necessidades básicas estejam em jogo, uma vez que têm seu sustento garantido e podem se colocar em jornadas duplas de trabalho. Por outro lado, ao se esperar que as mulheres negras assumam papéis voluntários, muitas vezes se ignora o fato de que elas o fazem em um contexto de necessidade, de luta pela sobrevivência, onde a realização de tais atividades pode significar sacrificar seu tempo e recursos que poderiam ser utilizados para cuidar de suas próprias famílias colocando-as em jornadas quíntuplas de trabalho.
O problema reside, portanto, na falta de reconhecimento dessas desigualdades e na normalização do voluntariado como uma obrigação de um grupo específico. Quando não se reconhece o peso diferente que essa prática carrega em contextos distintos, estamos perpetuando um ciclo de inequidade que precisa ser abordado de forma urgente. O trabalho voluntário deve ser valorizado e apoiado em todas as suas formas, mas é essencial que haja um olhar de equidade que considere as circunstâncias, as motivações e as realidades que cada grupo vivencia.
Assim, ao remunerar adequadamente o trabalho das mulheres negras, muitas vezes considerado meramente “cuidado”, redistribuir os recursos de modo que elas façam parte das que ocupam parte dos 6 milhões de empregos gerados pelo terceiro setor, haveria uma oportunidade significativa de não apenas proporcionar dignidade, mas também reduzir suas jornadas de trabalho de quíntupla para tripla. Essa mudança resultaria em ganhos expressivos do ponto de vista da saúde mental e da mitigação das desigualdades.
Portanto, é importante esclarecer que não estamos aqui para criticar o voluntariado, mas para interrogá-lo: quais corpos são reconhecidos como voluntários e quais são remunerados por desempenhar a mesma função? Essa distinção levanta questões cruciais sobre os custos associados a esse voluntariado, especialmente para aqueles que, frequentemente, são empurrados para a informalidade e invisibilidade.
Além disso, mesmo com o aumento do engajamento voluntário, de acordo com a pesquisa do Fundo Agbara, ja citada anteriormente, apenas 7% dos fundos filantrópicos no Brasil são destinados a organizações lideradas por pessoas negras, e menos de 10% das iniciativas comunitárias chefiadas por mulheres negras conseguem garantir financiamento institucional contínuo. Tais dados evidenciam um padrão de exclusão estrutural que mantém os recursos concentrados em grandes ONGs e instituições tradicionalmente brancas, enquanto coletivos periféricos enfrentam dificuldades em obter reconhecimento como agentes legítimos de transformação social.
Consequentemente, o terceiro setor, que emprega aproximadamente 6 milhões de pessoas no Brasil, revela um quadro em que muitas mulheres negras atuam em posições não remuneradas. Essa realidade reflete uma lógica que reserva cargos e salários justos a grupos historicamente privilegiados, deixando as mulheres negras à margem, em atividades informais. Essa divisão é sustentada por um duplo processo: a desvalorização do trabalho comunitário e a naturalização das funções de cuidado como uma responsabilidade feminina. Assim, enquanto homens brancos ocupam cargos de “gestão estratégica” e recebem salários justos, mulheres negras realizam trabalho idêntico sob o rótulo de “ativismo voluntário”, perpetuando ciclos de marginalização e exclusão.
Como ressalta a pesquisadora Vilma Reis, "a filantropia convencional opera no mesmo sistema que mantém as mulheres negras na margem, sob a justificativa da vocação e do ativismo". Essa marginalização se torna ainda mais evidente ao observar que 89,2% das lideranças em organizações negras são mulheres cisgênero, muitas das quais acumulam trabalho comunitário com o cuidado de suas famílias e atividades laborais formais. Esse acúmulo gera uma sobrecarga extrema, dificultando o acesso a direitos básicos como descanso, saúde e desenvolvimento profissional.
Portanto, é urgente repensar a estrutura da filantropia para garantir que o trabalho essencial realizado por mulheres negras seja reconhecido e devidamente remunerado. Isso requer uma revisão dos critérios de financiamento adotados por fundações e grandes investidores, assegurando que coletivos comunitários tenham acesso a recursos sem obstáculos burocráticos desproporcionais. Além disso, é fundamental criar mecanismos institucionais que assegurem condições dignas de trabalho para essas lideranças, combatendo a precarização e a informalidade.
Essa reflexão nos leva a considerar como existe uma hierarquia de valor que determina quem tem acesso à dignidade e à plena garantia de direitos. Enquanto algumas pessoas são remuneradas por seu trabalho, habilitando-as a acessar saúde, alimentação e educação de qualidade, as mulheres negras frequentemente exercem funções como voluntárias ou em iniciativas informais. Dessa forma, essas mulheres, em sua maioria, abraçam o trabalho comunitário em busca de garantir o básico para si e suas famílias, muitas vezes sacrificando seus próprios interesses e necessidades em prol de um futuro mais promissor para a próxima geração.
Esse cenário revela um sistema que valoriza e remunera desigualmente os esforços de diferentes grupos sociais, refletindo a crítica do poema de Grada Kilomba. Quando determinadas vozes falam, seu discurso é tratado como científico, universal e neutro, enquanto as experiências e as vozes marginalizadas são vistas como subjetivas e específicas. Ao olharmos para a realidade das mulheres negras que atuam em frentes comunitárias, percebemos que sua luta por dignidade, visibilidade e direitos é frequentemente deslegitimada, relegando-as a papéis informais onde suas contribuições são invisibilizadas.
Assim, essa desigualdade não é apenas uma questão de falta de reconhecimento, mas uma hierarquia violenta que molda quem pode falar e que conhecimentos são valorizados. As experiências dessas mulheres, repletas de sabedoria e resistência, são fundamentais para compreendermos a complexidade das relações sociais.
Por conseguinte, a transformação do terceiro setor não se limita a um aumento na quantidade de recursos destinados a comunidades negras; exige uma mudança profunda na forma como esse trabalho é percebido e valorizado. Sem essa revisão estrutural, a filantropia continuará a reproduzir as desigualdades que afirma combater, perpetuando ciclos de exclusão e marginalização. Portanto, o reconhecimento da resistência das mulheres negras na solidariedade comunitária deve ser acompanhado de ações concretas que garantam sua inclusão plena no terceiro setor. Somente assim será possível construir um modelo de filantropia que, de fato, promova justiça social e equidade.
Reconhecer essa dinâmica é crucial para promover um verdadeiro diálogo que desafie essas hierarquias e busque a equidade no acesso a direitos básicos, na valorização do trabalho e na construção de um futuro mais justo para todos.