Aprofundando a Filantropia: o que queremos dizer com prática?

Uma nova coluna para o Proximate Brasil sobre filantrópicas contemporâneas

November 2024
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À medida que vamos aprimorando a Proximate Brasil, anuncio, animada, o lançamento de uma nova coluna: Aprofundando a Filantropia, onde me juntarei a colunistas convidados para compartilhar perspectivas e provocações sobre a mudança de poder no campo da filantropia brasileira.

Para o primeiro artigo, tenho o prazer de convidar Ana Biglione para compartilhar reflexões sobre o conceito de “prática”. Ana é co-fundadora da Philó e da Noetá, associada à Proteus Inititative e membro do Movimento por uma Cultura de Doação. Tem vasta experiência em desenvolvimento organizacional no campo da filantropia no Brasil e na América Latina.

Em seu trabalho, ela frequentemente facilita processos de aprendizagem para organizações e indivíduos que estão engajados na transformação social. No artigo abaixo, ela reflete sobre a diferença entre uma técnica e uma prática - de fato - transformadora, e como entender a diferença é muitas vezes o que é necessário para fazer diferença. Você vai se deliciar!

Filantropia como prática

Por Ana Biglione, colunista convidada

À medida que líderes filantrópicos em todo o Brasil adotam modelos participativos, é importante lembrar que isso representa uma mudança significativa. Uma mudança de mentalidade e de abordagem. 

Talvez pela primeira vez, em grande escala, tem sido pedido, aos que trabalham no campo da filantropia, desenvolvimento e da assistência social, que reimaginem dramaticamente os seus papéis e a sua relação com as comunidades com quem trabalham.

Eles estão sendo convidados a mudar não apenas o tema da doação de recursos, mas também a forma como abordam seu trabalho. Estamos falando de mudar de uma perspectiva mecanicista, dualista e racional para uma mais humana e enraizada na prática.

De todos os campos de atuação em que é urgente um aprofundamento da prática, o da filantropia é aquele em que isso é imprescindível. Nesse aprofundamento reside a diferença entre manter ou alterar o status quo das dinâmicas sociais e de poder. Se os líderes da filantropia querem honestamente alterar quem detém o poder, é crucial compreender que não se trata apenas do que é feito, mas de como é feito.

Paulo Freire afirma algo bastante radical: "sem uma prática é impossível a superação da contradição opressor-oprimido". Perpetuamos o status quo ao nos eximirmos da nossa responsabilidade reflexiva, e damos vida a um mundo que se torna opressor para todos, em proporções desastrosamente desiguais. 

É evidente que, se queremos que o mundo mude, não devemos apenas agir; devemos praticar.

Mas o que afinal é prática? 

Que a beleza do que você ama seja o que você faz - Rumi

Comecei a me aprofundar sobre ela quando adentrei a Prática Social Reflexiva, abordagem com a qual trabalho, mas Paulo Freire já defendia a ideia de práxis como atividade prática conscientemente orientada e processualmente crítica, por meio da qual o ser humano cria e conforma a realidade e a si mesmo. 

Para ele, é inerente à prática (ou práxis) o ato da reflexão, e o fato de que, uma prática consistente, gera, necessariamente, uma redução da alienação e da desconexão. Do mesmo modo, assim como o exercício de praticar, como consequência, constrói pessoas sempre mais humanas e corrobora para a existência de uma sociedade verdadeiramente humana, a serviço do desenrolar constante de tudo que é vivo.

Viver na sociedade contemporânea significa normalmente compreender o que fazemos de uma forma simplista. Nosso fazer profissional, nosso trabalho, é visto apenas como meio para "ganhar a vida”. Não é comum refletir muito profundamente sobre o modo, as consequências, relevância ou sentido do que fazemos. É trabalho, e ponto. 

Esta maneira predominante de olhar é forjada pelo modelo socioeconômico ao qual pertencemos e, na maioria das vezes, nos é inconsciente. Mas a verdade é que ela reduz a compreensão do que fazemos no mundo, desconecta quem faz do que é feito. 

Pensar na ideia de prática é, então, o oposto disso. Olhar para o que fazemos como prática é compreender o sentido do que fazemos, a partir de quem somos e do como fazemos. Uma prática pode ser definida como a expressão daquilo que um indivíduo traz para o mundo. Ou talvez como a maneira pela qual algo do mundo se revela e se expressa através do que faz.

Dar vida a uma prática é criar uma ideia generativa, que carrega em si mesma a capacidade transformadora mencionada por Freire. É necessário um ato intencional de criar uma consciência crítica sobre o fazer, mantendo desperta a capacidade reflexiva através da qual participamos intencionalmente na realidade, do mundo que nos rodeia. Significa estarmos em constante desacostumar, renovar.

Praticar é, neste sentido, uma atividade singular à humanidade, que é capaz de não apenas agir, mas de refletir intencionalmente sobre si própria e sobre sua própria ação. É uma atividade que nos revela como seres éticos, políticos e co-criadores da realidade que nos cerca - e responsáveis por ela. Não podemos esperar de outro ser vivo que seja consequente com seus atos, e não podemos deixar de esperar do ser humano que o seja. 

Uma postura de cuidado

O pior mal é aquele ao qual nos acostumamos - Jean-Paul Sartre 

Em Ativismo delicado, recentemente publicado no Brasil, os sul-africanos Allan Kaplan e Sue Davidoff também deixam claro que uma prática pede cuidado, observação e reflexão contínuas para que exista plenamente e se mantenha ativa; para que se mantenha prática.

Desenvolver uma postura de atenção, cuidado, questionamento e reverência com o que fazemos é essencial para que não nos acomodemos na poltrona confortável de uma não-práxis, de uma atuação desumanizadora e automatizada, que se prende em ferramentais e adormece frente à realidade que endereça, e à seu próprio sentido de existência. Ao não abrir espaço para a reflexão crítica, acabamos por manter os paradigmas que acreditamos estar transformando.

O convite posto parece ser o de sustentar a intencionalidade da observação reflexiva, que gera uma consciência crescente de si próprio. O mesmo Allan Kaplan me disse uma vez: "A prática do ativismo é a atentividade à prática".

Ao mesmo tempo, é preciso ter cuidado: assumir essa responsabilidade deve ser igualmente proporcional aos privilégios que usufruímos. Quanto mais privilégios uma pessoa tiver, maior sua responsabilidade em refletir e se engajar na construção de uma prática. 

A filantropia como locus de coerência

Revolucionário é todo aquele que quer mudar o mundo e tem a coragem de começar por si mesmo - Sérgio Vaz

Na filantropia institucionalizada atual, não é pouco comum encontrar programas que dizem fazer promoção de autonomia com estruturas de funcionamento altamente controladoras. Ou ainda a construção de metas como intenção estratégica, que, na prática, acabam limitando a criatividade e um olhar sistêmico.  

No Brasil, por exemplo, iniciativas como o PIPA - que trabalha para democratizar a distribuição de recursos filantrópicos para as favelas - ou o último congresso do GIFE, com o tema Desafiando as Estruturas das Desigualdades, destacaram recentemente como as estruturas de desenho dos programas podem manter acidentalmente os mesmos paradigmas de desigualdade sócio-racial que essas iniciativas desejam transformar.

Em boa parte das situações, se vive algo semelhante ao que Bárbara Christian, escritora e pesquisadora de estudos afro americanos, nomeia como crime da inocência: o ato de nos isentamos de um entendimento (ou nos mantermos um desconhecimento) para não termos de abrir mão dos privilégios que teríamos que deixar para trás se o fizéssemos. 

Algo como: "ah, mas eu não sabia que fazer assim é ser controladora". Vivemos uma abstenção da responsabilidade tanto pelo que escolhemos fazer no mundo, quanto pela ausência de reflexão crítica sobre isso. 

Quando mantemos uma atitude observadora e reflexiva, nos tornamos mais capazes de perceber quando nossa prática está deixando de ser prática para se tornar uma mera reprodução ou um fazer alienado, e podemos trazer consciência para padrões indesejados (de comportamento, de dinâmicas) que costumam estar escondidos. Dar nome ao que emerge da reflexão crítica, mesmo que nem sempre seja agradável ou esteja de acordo com os nossos desejos ou autoimagem, é fundamental. 

Mas ainda que como ideia isto possa parecer simples, sua realização não é. O quanto você tem de fato refletido não apenas sobre o que faz, mas sobre como faz o que faz? O quanto tem escutado outros, questionado, se aberto a rever? Na busca de uma consciência crítica e contínua, é preciso ganhar coragem para sermos capazes de observar - de forma rigorosa, e examinar - com escrutínio, o que temos confortavelmente feito. 

Além disso, é preciso reconhecer que, na sociedade contemporânea, quase todas as atitudes necessárias são contrárias a um modus operandi que parece estar em vigor atualmente - de aceleração, separação, materialismo e egocentrismo, o que torna a tarefa uma escolha ainda mais árdua. Questionar, muitas vezes significa ir mais devagar, fazer menos, ainda que com mais consistência. Significa abordar a transformação social com humildade, envolver-se no diálogo com parceiros, adaptar estratégias, rever seu lugar. Significa cultivar espaço para uma compreensão mais aprofundada da realidade. 

Mas, por mais desafiador que isso seja, se a filantropia - que nasce com a intenção de transformar como sua missão primordial não o fizer -  quem o fará? 

Ao rumar na sua direção, estamos nos abrindo a regenerar dinâmicas que estão no cerne das questões da nossa sociedade e sua desigualdade como um todo: relações de poder, fragmentação, distanciamento. Ou seja, quando mantemos viva a nossa prática, contribuímos para uma mudança de fato sistêmica e perene, transversal à qualquer apoio a projetos, algo que nenhuma estratégia de ação alcançaria sozinha.

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